Casos de violência reacendem debate sobre feminicídio e desigualdade de gênero no Brasil

Advogada e pesquisadora defendem políticas públicas, educação emancipatória e rigor judicial para enfrentar a escalada da violência contra mulheres.

Por Karol Peralta

Dois episódios de violência extrema contra mulheres em São Paulo, registrados nos últimos dias, reacenderam o alerta para a persistência do feminicídio e das desigualdades de gênero no país. Especialistas apontam que o enfrentamento do problema exige políticas públicas consistentes, atuação judicial qualificada e transformações socioculturais profundas.

Os casos de maior repercussão envolveram uma mulher de 31 anos, que teve as pernas severamente mutiladas após ser atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro, e o ataque a tiros contra uma ex-companheira em uma pastelaria. A Polícia Civil classificou o primeiro episódio como tentativa de feminicídio, com “requintes de crueldade” e ausência total de possibilidade de defesa da vítima.

A advogada Luciane Mezarobba, especialista em direitos das mulheres, afirma que episódios como esses reforçam a urgência de uma cultura jurídica emancipatória, capaz de reconhecer direitos e combater desigualdades estruturais. “A luta pela dignidade das mulheres e igualdade de gênero passa pela criação de uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos”, destacou.

Ataque em duas frentes: políticas públicas e vida privada

Para Mezarobba, o enfrentamento à violência requer ações simultâneas: no Estado e nas famílias. No setor público, ela defende que políticas afirmativas, construção de creches, escolas em período integral e medidas antidiscriminatórias são fundamentais para reduzir a sobrecarga que recai majoritariamente sobre as mulheres.

A advogada também destacou a importância do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ferramenta que orienta magistrados a considerar os impactos das desigualdades de gênero em decisões judiciais.

Rigidez na punição não basta

Apesar das leis já existentes, como a pena de 20 a 40 anos para o feminicídio, a advogada observa que a legislação não tem sido suficiente para inibir agressores. Para ela, o Estado precisa enfrentar redes organizadas de ódio e misoginia que se disseminam principalmente nas redes sociais e reforçam comportamentos violentos.

“É preciso que o Estado viabilize a justa punição aos homens agressores. Isso passa pelo enfrentamento às redes de ódio e misoginia que pululam nas redes sociais”, afirmou.

Transformação estrutural começa na infância

Na esfera privada, Mezarobba defende uma educação emancipatória, que rompa com estereótipos de gênero e distribua igualmente direitos e deveres entre meninas e meninos. Segundo ela, a ideia de que espaços públicos são masculinos e o lar é feminino ainda está profundamente enraizada, alimentando ciclos de violência e desigualdade.

Histórico de desigualdade institucional

A psicóloga e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), Maisa Guimarães, lembra que a desigualdade entre homens e mulheres foi reforçada ao longo de séculos por leis e instituições. Segundo ela, a igualdade de direitos no Brasil é um fenômeno recente: somente com o Estatuto da Mulher Casada, no final da década de 1960, mulheres passaram a ser reconhecidas como plenamente capazes de decidir sobre seus próprios trabalhos.

Guimarães explica que a violência de gênero está vinculada a uma tradição patriarcal que estabelece hierarquias estruturais e mantém a mulher em posição de subordinação. “Quando o agressor é alguém próximo, muitas vezes o entorno ignora os sinais e a própria vítima minimiza os riscos”, afirma.

Escalada gradual da violência

A advogada lembra que os ciclos de agressão raramente começam com violência extrema. A Lei Maria da Penha lista cinco formas de violência: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. As agressões tendem a escalar quando há sensação de impunidade e legitimação social de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Recorde de feminicídios em São Paulo

Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mostram que, entre janeiro e outubro de 2025, foram registrados 53 casos de feminicídio na capital — o maior número desde o início da série histórica, em 2018. No estado, 207 mulheres foram assassinadas desde janeiro. Apenas em outubro, foram 22 mortes e mais de 5,8 mil casos de lesão corporal dolosa.

O feminicídio é definido como homicídio cometido contra mulheres em razão do gênero, caracterizado por violência doméstica, discriminação ou menosprezo à condição feminina. No Brasil, o crime é classificado como hediondo, com pena de 12 a 30 anos.

Subnotificação ainda é desafio

Segundo Maisa Guimarães, há avanço na identificação dos crimes, mas também agravamento da violência. “Há um esforço político para reduzir a subnotificação, mas o aumento de registros também revela que as agressões estão se intensificando”, afirmou.

Ela acrescenta que muitos homens têm reagido com violência à expansão dos direitos das mulheres, especialmente no fim de relacionamentos, quando recusam que elas decidam “como querem viver a própria vida”.

Compartilhe esta postagem:

Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

contato@mspantanalnews.com.br